terça-feira, 21 de janeiro de 2014



Autorretrato (1899) - Pablo Picasso


"O que pensa que é um artista? Um idiota, que só tem olhos quando pintor, só tem ouvidos enquanto músico, ou apenas uma lira para todos os estados de alma, quando poeta, ou só músculos quando lavrador? Pelo contrário! Ele é simultaneamente um ente político que vive constantemente com a consciência dos acontecimentos mundiais destruidores, ardentes ou alegres e que se forma completamente segundo a imagem destes. Como seria possível não ter interesse pelos outros homens e afastar-se numa indiferença de marfim de uma vida que se nos apresenta tão rica?Não, a pintura não foi inventada para decorar casas. Ela é uma arma de ataque e defesa contra o inimigo." 
GUERNICA DE PABLO PICASSO - A minha interpretação

Mais do que um testemunho ocular, é a consternação do pintor patente em cada traço, em cada figura e que permanecerá para todo o sempre como forma de nos lembrar a intemporalidade do sofrimento.
Assim, o quadro constitui uma espécie de friso que se liga naturalmente da esquerda à direita, tanto pelo dramatismo das imagens e das formas como pelas cores utilizadas (o cinzento, o preto, o branco aliadas a um tom pardacento)  que evocam a morte no seu sentido mais amplo.
Aproximando o olhar, deparo-me com a imagem de uma mãe que, mais do que chora, grita a morte do filho que jaz nos seus braços, expressão de fragilidade, de impotência perante tamanha atrocidade.
Ao cimo, um touro, símbolo da brutalidade, cujo olhar denota a frieza e a crueldade do ataque.
Em baixo, um homem caído, decapitado e desmembrado, segurando uma espada partida na mão, da qual parece nascer uma frágil flor, símbolo da esperança e de paz, conquistada com o sangue de tantas vítimas. 
Ao centro, um cavalo, o povo, a expressão da dor infligida, da dor coletiva. Cavalo este pintado de forma a lembrar páginas dos jornais, para que a memória perdure.
Do lado direito, duas mulheres que, de braços erguidos, implorando aos céus, ou de rastos tentando fugir da morte, lembram a violência do ataque e a condição humana das vítimas.
Há, no entanto, uma réstia de esperança, uma lanterna que ilumina o povo e o incita à resistência, ao combate.
Toda a cena é dominada pelo olho/lâmpada que nos pretende lembrar que tudo aconteceu às claras, em plena luz do dia. É o olho da consciência humana.

Concluindo, este quadro intemporal de Picasso encerra em si uma mensagem humanista tão real e atual que é impossível ficar-lhe indiferente, mesmo sem conhecer o acontecimento que está por trás da sua criação. Esta imagem constitui, por isso, um verdadeiro documento histórico.





DESCRIÇÃO DA GUERRA EM GUERNICA – Carlos de Oliveira (1921-1981)


 


I

Entra pela janela
o anjo camponês;
com a terceira luz na mão;
minucioso, habituado
aos interiores de cereal,
aos utensílios
que dormem na fuligem;
os seus olhos rurais
não compreendem bem os símbolos
desta colheita: hélices,
motores furiosos;
e estende mais o braço; planta
no ar, como uma árvore,
a chama do candeeiro.


II

As outras duas luzes
são lisas, ofuscantes;
lembram a cal, o zinco branco
nas pedreiras;
ou nos umbrais
de cantaria aparelhada; bruscamente;
a arder; há o mesmo
branco na lâmpada do tecto;
o mesmo zinco
nas máquinas que voam
fabricando o incêndio; e assim,
por toda parte,
a mesma cal mecânica
vibra os seus cutelos.


III

Ao alto; à esquerda;
onde aparece
a linha da garganta,
a curva distendida como
o gráfico dum grito;
o som é impossível; impede-o pelo menos
o animal fumegante;
com o peso das patas, com os longos
músculos negros; sem esquecer
o sal silencioso
no outro coração:
por cima dele; inútil; a mão desta
mulher de joelhos
entre as pernas do touro.


IV

Em baixo, contra o chão
de tijolo queimado,
os fragmentos duma estátua;
ou o construtor da casa
já sem fio de prumo,
barro, sestas pobres? quem
tentou salvar o dia,
o seu resíduo
de gente e poucos bens? opor
à química da guerra,
aos reagentes dissolvendo
a construção, as traves,
este gládio,
esta palavra arcaica?


V

Mesa, madeira posta
próximo dos homens: pelo corte
da plaina,
a lixa ríspida,
a cera sobre o betume, os nós;
e dedos tacteando
as últimas rugosidades;
morosamente; com o amor
do carpinteiro ao objecto
que nasceu
para viver na casa;
no sítio destinado há muito;
como se fosse, quase,
uma criança da família.


VI

O pássaro; a sua anatomia
rápida; forma cheia de pressa,
que se condensa
apenas o bastante
para ser visível no céu,
sem o ferir;
modelo doutros voos: nuvens;
e vento leve, folhas;
agora, atônito, abra as asas
no deserto da mesa;
tenta gritar às falsas aves
que a morte é diferente:
cruzar o céu com a suavidade
dum rumor e sumir-se.


VII

Cavalo; reprodutor
de luz nos prados; quando
respira, os brônquios;
dois frêmitos de soro; exalam
essa névoa
que o primeiro sol transforma
numa crina trémula
sobre pastos e éguas; mas aqui
marcou-o o ferro
dos lavradores que o anjo ignora;
e endureceu-o de tal modo
que se entrega;
como as bestas bíblicas;
ao tétano, ao furor.


VIII

Outra mulher: o susto
a entrar no pesadelo;
oprime-a o ar; e cada passo
é apenas peso: seios
donde os mamilos pendem,
gotas duras
de leite e medo; quase pedras;
memória tropeçando
em árvores, parentes,
num descampado vagaroso;
e amor também:
espécie de peso que produz
por dentro da mulher
os mesmos passos densos.


IX

Casas desidratadas
no alto forno; e olhando-as,
momentos antes de ruírem,
o anjo desolado
pensa: entre detritos
sem nenhum cerne ou água,
como anunciar
outra vez o milagre das salas;
dos quartos; crescendo cisco
a cisco, filho a filho?
as máquinas estranhas,
os motores com sede, nem sequer
beberam o espírito das minhas casas;
evaporaram-no apenas.


X

O incêndio desce;
do canto superior direito;
sobre os sótãos,
os degraus das escadas
a oscilar;
hélices, vibrações, percutem os alicerces;
e o fogo, veloz agora, fende-os, desmorona
toda a arquitectura;
as paredes áridas desabam
mas o seu desenho
sobrevive no ar; sustém-no
a terceira mulher; a última; com os braços
erguidos; com o suor da estrela
tatuada na testa.