sábado, 1 de fevereiro de 2014

O porquê do filme da minha vida

Todos nós temos o filme da nossa vida, ainda que esta esteja apenas no primeiro terço, ou vá a meio. É uma necessidade que nos assiste. O filme educa-nos, aconselha-nos, ralha-nos, grita-nos, abre-nos os olhos, ao mesmo tempo que nos deixa voar nas asas da fantasia. Ele é pai, é mãe, irmão, amigo, professor, ele é cada um de nós. Quem nunca se imaginou protagonista numa fita de cinema, como herói ou vilão, princesa ou madrasta, pobre ou rico, injustiçado ou justiçeiro? É o poder da imagem, da palavra, da música, da cor (ou da ausência dela).



Por isso, partilho convosco um dos filmes que mais me marcaram até hoje, o "Cinema Paraíso", de Giuseppe Tornatore, galardoado  com o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1990. Nele está contida a essência do cinema em si mesmo, para além de nos recordar a importância das coisas simples, como a verdadeira amizade e a descoberta do amor, para além de nos lembrar que somos meros humanos. Por isso, o mostro aos meus alunos, sempre que quero trabalhar com eles valores que atualmente andam um pouco esquecidos.

É um filme simples, como só podia ser, mas no seu conjunto transmite uma mensagem que nos toca a todos e à qual é impossível ficar indiferente.



Partilho convosco a cena final, quando o protagonista, já adulto, recebe do seu amigo Alfredo, entretanto falecido, uma lata com cenas censuradas de beijos de vários filmes da época. As imagens, associadas à música de Ennio Morricone, preenchem qualquer vazio e aquecem-nos o coração







Valerá uma imagem mais do que mil palavras? Será que acreditamos mesmo nisso? Ou é mais uma ideia feita que nos habituámos a aceitar como um dado adquirido?!

http://www.worldpressphoto.org/awards/2013/contemporary-issues/altaf-qadri/02



Claro que ao vermos esta fotografia, nos apercebemos logo que se trata de uma escola (na medida do possível) debaixo de um viaduto, no meio de entulho e que a vontade de aprender deve ser enorme... Mas não haverá nesta imagem aspetos que ficam por contar? Quem são estas crianças? Porque estão ali e não numa verdadeira escola? Quais são os seus sonhos? Alguém as ouviu? E nós? Será que vemos a imagem com Olhos de Ver?



http://www.worldpressphoto.org/awards/2013/daily-life/daniel-rodrigues



Sempre que me deparo com esta fotografia, de Daniel Rodrigues, vencedora de um prémio no concurso do World Press Photo, vejo um grupo de crianças que se divertem a jogar à bola. Mas as palavras para a interpretar não se resumem a descrever aquilo que o sentido da visão me permite alcançar. São necessárias palavras como: simplicidade, movimento, suor, ingenuidade, inocência, sonho, vontade, sacrifício, para que a imagem transmita a verdadeira mensagem.



Valerá uma imagem mais do que mil palavras? Não me parece. Para mim, uma imagem + uma palavra = uma mensagem completa. Logo, imagem e palavra complementam-se e, em conjunto, contribuem para formar consciências, para preencher o vazio, para mudar o mundo.



     A grelha de observação de imagem que se segue teria como alvo os alunos do 10ºano de escolaridade, na disciplina de Português. 
     Depois da observação e da interpretação da pintura de Gustave Klimt, "As três fases da vida", teriam de preencher a grelha e efetuar um exercício de" intertextualidade" com o poema "Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio", de Ricardo Reis.



 Grelha de Observação de Imagem Fixa
 
PERCEÇÃO

Elementos que compõem a imagem



  No centro da tela, surgem três figuras humanas, provavelmente três mulheres: uma criança, uma mulher jovem e uma mulher já idosa.

IDENTIFICAÇÃO

Distribuição dos elementos na tela


  •           As personagens estão dispostas, ao centro, sobre um fundo de cor escura, na parte superior, e de tons castanhos nas restantes partes.          
  •        As duas mais jovens surgem abraçadas, cúmplices, demonstrando sinais de afeto e ternura. Estão envoltas num manto enfeitado com motivos característicos do pintor em questão, que poderão ser flores.
  •           A mais idosa encontra-se afastada das outras, nua e apresenta uma postura de desolação, de derrota.

Cores (simbologia)


  •            As cores predominantes no centro da tela são mais vivas comparativamente com o fundo negro e pardacento que completa a imagem.
  •            As cores mais vivas (em tons de azul e de violeta), aliadas ao tom dos cabelos e da pele clara e rosada das duas criaturas, representam a vida, a infância e a juventude.
  •            Pelo contrário, a mais idosa apresenta um tom de pele pardacento e sem brilho que denota a passagem do tempo, o envelhecimento. Os cabelos baços complementam a postura da figura.
  •            O negro, na parte superior da tela, representa a morte, a degradação. Ideia que também está presente na mancha preta sob os pés da anciã, talvez lembrando que o “fim” está próximo.
  •             Os tons acastanhados que ocupam quase a totalidade do quadro fazem lembrar a areia que, numa ampulheta, tem a função de contar o tempo, a passagem do tempo.
                                                   
Texturas
                                                            

  •    O aspeto rugoso do corpo da mulher mais idosa, transmitido pelas linhas que o pintor imprimiu na sua figura.
  •            A textura arenosa e áspera do fundo acastanhado a fazer lembrar a areia.
  •      A contrastar com estas texturas, destaca-se a suavidade dos corpos claros e rosados, transmitindo mais uma vez a oposição entre o novo e o velho, entre a juventude e a degradação, a decadência

INTERPRETAÇÃO
(polissemia)

Assuntos sugeridos pela mensagem




  •                   O ciclo da vida;
  •                    A inexorabilidade do tempo;
  •                    A condição humana;
  •                    O novo/o velho; o belo/ o feio;
  •                    A decadência do corpo.



Funções da imagem

Função narrativa, função estética, função simbólica.





terça-feira, 21 de janeiro de 2014



Autorretrato (1899) - Pablo Picasso


"O que pensa que é um artista? Um idiota, que só tem olhos quando pintor, só tem ouvidos enquanto músico, ou apenas uma lira para todos os estados de alma, quando poeta, ou só músculos quando lavrador? Pelo contrário! Ele é simultaneamente um ente político que vive constantemente com a consciência dos acontecimentos mundiais destruidores, ardentes ou alegres e que se forma completamente segundo a imagem destes. Como seria possível não ter interesse pelos outros homens e afastar-se numa indiferença de marfim de uma vida que se nos apresenta tão rica?Não, a pintura não foi inventada para decorar casas. Ela é uma arma de ataque e defesa contra o inimigo." 
GUERNICA DE PABLO PICASSO - A minha interpretação

Mais do que um testemunho ocular, é a consternação do pintor patente em cada traço, em cada figura e que permanecerá para todo o sempre como forma de nos lembrar a intemporalidade do sofrimento.
Assim, o quadro constitui uma espécie de friso que se liga naturalmente da esquerda à direita, tanto pelo dramatismo das imagens e das formas como pelas cores utilizadas (o cinzento, o preto, o branco aliadas a um tom pardacento)  que evocam a morte no seu sentido mais amplo.
Aproximando o olhar, deparo-me com a imagem de uma mãe que, mais do que chora, grita a morte do filho que jaz nos seus braços, expressão de fragilidade, de impotência perante tamanha atrocidade.
Ao cimo, um touro, símbolo da brutalidade, cujo olhar denota a frieza e a crueldade do ataque.
Em baixo, um homem caído, decapitado e desmembrado, segurando uma espada partida na mão, da qual parece nascer uma frágil flor, símbolo da esperança e de paz, conquistada com o sangue de tantas vítimas. 
Ao centro, um cavalo, o povo, a expressão da dor infligida, da dor coletiva. Cavalo este pintado de forma a lembrar páginas dos jornais, para que a memória perdure.
Do lado direito, duas mulheres que, de braços erguidos, implorando aos céus, ou de rastos tentando fugir da morte, lembram a violência do ataque e a condição humana das vítimas.
Há, no entanto, uma réstia de esperança, uma lanterna que ilumina o povo e o incita à resistência, ao combate.
Toda a cena é dominada pelo olho/lâmpada que nos pretende lembrar que tudo aconteceu às claras, em plena luz do dia. É o olho da consciência humana.

Concluindo, este quadro intemporal de Picasso encerra em si uma mensagem humanista tão real e atual que é impossível ficar-lhe indiferente, mesmo sem conhecer o acontecimento que está por trás da sua criação. Esta imagem constitui, por isso, um verdadeiro documento histórico.





DESCRIÇÃO DA GUERRA EM GUERNICA – Carlos de Oliveira (1921-1981)


 


I

Entra pela janela
o anjo camponês;
com a terceira luz na mão;
minucioso, habituado
aos interiores de cereal,
aos utensílios
que dormem na fuligem;
os seus olhos rurais
não compreendem bem os símbolos
desta colheita: hélices,
motores furiosos;
e estende mais o braço; planta
no ar, como uma árvore,
a chama do candeeiro.


II

As outras duas luzes
são lisas, ofuscantes;
lembram a cal, o zinco branco
nas pedreiras;
ou nos umbrais
de cantaria aparelhada; bruscamente;
a arder; há o mesmo
branco na lâmpada do tecto;
o mesmo zinco
nas máquinas que voam
fabricando o incêndio; e assim,
por toda parte,
a mesma cal mecânica
vibra os seus cutelos.


III

Ao alto; à esquerda;
onde aparece
a linha da garganta,
a curva distendida como
o gráfico dum grito;
o som é impossível; impede-o pelo menos
o animal fumegante;
com o peso das patas, com os longos
músculos negros; sem esquecer
o sal silencioso
no outro coração:
por cima dele; inútil; a mão desta
mulher de joelhos
entre as pernas do touro.


IV

Em baixo, contra o chão
de tijolo queimado,
os fragmentos duma estátua;
ou o construtor da casa
já sem fio de prumo,
barro, sestas pobres? quem
tentou salvar o dia,
o seu resíduo
de gente e poucos bens? opor
à química da guerra,
aos reagentes dissolvendo
a construção, as traves,
este gládio,
esta palavra arcaica?


V

Mesa, madeira posta
próximo dos homens: pelo corte
da plaina,
a lixa ríspida,
a cera sobre o betume, os nós;
e dedos tacteando
as últimas rugosidades;
morosamente; com o amor
do carpinteiro ao objecto
que nasceu
para viver na casa;
no sítio destinado há muito;
como se fosse, quase,
uma criança da família.


VI

O pássaro; a sua anatomia
rápida; forma cheia de pressa,
que se condensa
apenas o bastante
para ser visível no céu,
sem o ferir;
modelo doutros voos: nuvens;
e vento leve, folhas;
agora, atônito, abra as asas
no deserto da mesa;
tenta gritar às falsas aves
que a morte é diferente:
cruzar o céu com a suavidade
dum rumor e sumir-se.


VII

Cavalo; reprodutor
de luz nos prados; quando
respira, os brônquios;
dois frêmitos de soro; exalam
essa névoa
que o primeiro sol transforma
numa crina trémula
sobre pastos e éguas; mas aqui
marcou-o o ferro
dos lavradores que o anjo ignora;
e endureceu-o de tal modo
que se entrega;
como as bestas bíblicas;
ao tétano, ao furor.


VIII

Outra mulher: o susto
a entrar no pesadelo;
oprime-a o ar; e cada passo
é apenas peso: seios
donde os mamilos pendem,
gotas duras
de leite e medo; quase pedras;
memória tropeçando
em árvores, parentes,
num descampado vagaroso;
e amor também:
espécie de peso que produz
por dentro da mulher
os mesmos passos densos.


IX

Casas desidratadas
no alto forno; e olhando-as,
momentos antes de ruírem,
o anjo desolado
pensa: entre detritos
sem nenhum cerne ou água,
como anunciar
outra vez o milagre das salas;
dos quartos; crescendo cisco
a cisco, filho a filho?
as máquinas estranhas,
os motores com sede, nem sequer
beberam o espírito das minhas casas;
evaporaram-no apenas.


X

O incêndio desce;
do canto superior direito;
sobre os sótãos,
os degraus das escadas
a oscilar;
hélices, vibrações, percutem os alicerces;
e o fogo, veloz agora, fende-os, desmorona
toda a arquitectura;
as paredes áridas desabam
mas o seu desenho
sobrevive no ar; sustém-no
a terceira mulher; a última; com os braços
erguidos; com o suor da estrela
tatuada na testa.